A infância e suas memórias

Por Rita Durigan

Era manhã de quinta-feira e nos preparávamos para sair. Valentina começou a cantarolar algo criado por ela, misturando palavras, sons, ritmos e entonações que juntos naquela composição, provavelmente, foram executados uma única vez. Aquela.

Quando me dei conta parei tudo para observar e ouvir. Segundos depois ela percebeu e se explicou: “Eu estou cantando, Mamãe”. Como se precisasse.

-“Eu sei, filha. E essa música é tão linda! A Mamãe adora ouvir você cantar.” Ela sorriu. E foi ai, nesta frase, neste sorriso, que fui transportada para dentro da minha própria infância. Já não era ela, mas eu, cantarolando feliz no banco traseiro do Chevette branco entre sorrisos da minha mãe e elogios do meu pai: “O pai adora ouvir você cantar”. Era eu, sentindo o poder de palavras assim.

Hoje imagino meu pais cansados depois de um longo dia, provavelmente desejando uns minutinhos de silêncio. Algumas vezes, talvez, tenham até pedido pra eu parar só um pouquinho, ou inventado alguma brincadeira dessas de ficar sem falar por alguns preciosos instantes. Mas disso eu não me lembro. Nada. Só de um carinho e um cuidado nas palavras amorosas de incentivo que me tornavam grande, capaz e feliz como mais ninguém naquele momento. Simplesmente feliz. E com vontade de cantar mais. De viver mais.

Quando voltei do meu passado para aquele sorrisinho que me levou até lá, me dei conta do que estava acontecendo. Do que está, aliás. As memórias da minha filha estão sendo guardadas agora e para sempre dentro dela e eu sou parte fundamental disso. Quais são as lembranças que eu gostaria de deixar para ela? Que sentimentos ela terá quando recordar a própria infância? Que parte do que estamos vivendo agora ela vai gostar de ter com ela no futuro? Que frases ou palavras a farão lembrar de nós duas?

Naquela quinta-feira, juntas, brincamos mais, falamos mais, nos olhamos mais, cantamos mais, nos abraçamos mais e, sem saber que seria possível, nos amamos mais. E foi um dia bem mais bonito. Desses bons de serem lembrados.

Pra encerrar, vou traduzir a cantiga que ilustra o topo deste post e que encontrei por acaso – ou não -, na mesma quinta-feira, no livro “My Village – Rhymes from around the World” ou “Minha cidade – Rimas de todo o Mundo”.

“Minha cidade que eu amo
minha cidade, meu doce lar
Onde meu pai, minha mãe e minha família moram
Não é fácil te esquecer
É tão difícil estar distante
Minha cidade tranquila e acolhedora
Todos os dias eu sinto saudades.”

Originalmente é uma cantiga da Indonesia chamada “Desaku”.

  
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One thought on “A infância e suas memórias

  1. 'GLÓRIA diz:

    FICO NA DÚVIDA , QUAL O TEXTO MAIS LINDO E EMOCIONANTE. SE O DA ESCRITORA DA INDONÉSIA, O DA RITA OU DA MUSIQUINHA DA VALENTINA. INFELIZMENTE , NÃO PUDE OUVIR A MÚSICA MAS, FICO IMAGINANDO….E IMAGINANDO….E FICO FELIZ TB.

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