por Nós 3
Era pra ser um coração. Na xícara de café que me esperava pra que eu esfriasse a cabeça com a bebida quente e pensasse em como mudar o mundo. Aqui, de dentro de casa.
Mas o café era líquido.
Eu assoprei, queria mais frio, ele se moveu e Miguel caiu.
Queria a mãe que queria o filho que queria a mão, mas caiu.
Espera.
Acho que o café está na temperatura ideal.
Miguel pode esperar, tem a eternidade inteira agora.
A mãe pode esperar. Sentada. Ele não vai voltar.
Espera, deixa eu ler as notíciais.
Quer dizer que George Floyd testou positivo? Tinha coronavírus e problemas cardíacos? Talvez então não tenha sido o joelho sob o pescoço? É, vão pensar. Vão dizer. Eu não. Estou aqui, dentro de casa, esperando o vírus passar, a crise acabar, brincando de salvar o mundo. Com palavras.
Miguel, espere, menino, não, chore, não, queira, sua, mãe.
Ela não pode.
Agora não.
Tem os cachorros.
Tem as unhas.
E ela precisa.
Vocês precisam.
Eu preciso. Mesmo?
Claro.
Eu ajudo.
Sou boa.
Dou trabalho.
E dinheiro.
Porque chorar?
Ela volta.
Espere.
Menino.
Espere.
Nós, adultos, estamos ocupados construindo o futuro para você.
Futuro. Para. Você.
Empurramos.
Atiramos.
Matamos.
Pele. Preta.
Mas tem a cesta básica.
E o emprego.
E tem o futuro.
Futuro.
Espere, Miguel.
Espere eu lavar as mãos.
Logo tudo passa. Logo.
Logo esquecem. Logo.
E, um dia, a gente vai se encontrar.
Será? Sim, claro. Me disseram pra acreditar.
Mas qual era o nome? Mesmo? Daquele? Daquela?
Esquece. Faz tempo… 3 dias. 2…
Era só… só…
Do que estamos falando mesmo?
Esquece. #vaipassar
Vai?
Mãããããeeeeee, estou com medo.
Sozinho.
O elevador.
Ploft.
Era negra.
A pele.
Coincidência, não viaja.
Falando nisso, tem parques reabrindo na Flórida.
Promoção: R$ 20 mil.
Migueeeeeeeellllllllll!!!!!
Lá embaixo, Miguel. Embaixo.
Sempre. Embaixo.
Lá!
Aqui. Ninguém te ouve, Miguel.
Ninguém me ouve.
Lá. Embaixo. Abaixo de todos. Lá.
Migueeeelllll
Me ouve…
Sem gritos, escuta
Escuta.
Me escuta.
Um empurrão surdo.
Migueeeelllll
Invisível
Me escuta…