Há beleza na dor

Por Paty Juliani

– Seis anos é muito.

– Mas parece pouco.

– Tudo depende do ponto de vista.

– Sim. Hoje, mais do que nunca, isso faz sentido.

Era uma reunião virtual de trabalho mas poderia não ser.

– Mamãe, não demora. Você precisa fazer as bandeirinhas.

Revisitar a própria história.

Seis anos é pouco?

– Estamos fazendo a barraca da pescaria e você precisa fazer as bandeirinhas senão não vai ter festa.

Festa. 

Como assim?

Respiro.

Quarenta mil mortos.

Quarenta mil!

– É importante contar outras histórias. Mas, para isso acontecer, é preciso revisitar a sua própria história.

Escrever.

Refletir.

Planejar.

Agendar.

– Mamãe, o papai vai fazer o churros. Você vai fazer a pipoca?

Ouvir.

Falar.

– Mamãe, vamos almoçar. Está na mesa. E temos muitas coisas para fazer.

Elas tinham decidido. 

Teria festa.

Festa Junina.

Para nós.

E nossos cachorros.

Depois de 89 dias, elas já não fazem mais as mesmas perguntas. E nem esperam. Elas fazem o que acham que tem que fazer e criam as percepções de mundo através das mensagens transmitidas em suas rotinas diárias.

Desde que decidimos conversar, com sinceridade e respeito, sobre a decisão de ficarmos apenas nós quatro enquanto isso durar e o porque assim faríamos, a ansiedade se desfez.

Por vezes há angústia, tristeza e saudade. Mas há o respeito por nós, pelo outro, pela vida! E elas compreenderam que assim seria. E assim está sendo. Com responsabilidade por nossas atitudes e entendimento da possibilidade de nossas escolhas.

E os rituais tem acontecido. Com conversas infinitas, vínculo e conexão.

– Olha que legal mamãe. Terminamos as lembrancinhas. Cada peixe tem um número e cada número tem um brinde. 

Olho para o que elas fizeram: caderninhos amarrados com fitas e desenhos na capa; lápis encapado por linhas coloridas; chocalhos feitos com vários recipientes reciclados e sons diversos e kits de plantação (uma semente de feijão, duas bolinhas de algodão e um recipiente, retirado do suporte de ovos, para poder fazer a plantação).

A caixa de pescaria foi forrada com palhas para encaixar os peixes de papelão, pintados de cores diversas. As varinhas foram feitas com gravetos e ganchos de metal (retirados da cozinha) e amarrados por fios de lãs.

Quase chorei ao ver a produção.

Eu estava respirando.

O mundo desaba mas há vida em nossa frente.

– Gostou?

– A mamãe amou. Lindo demais!

O bolo de milho eu tinha feito no dia anterior. Uma receita vinda da mãe de uma amiga especial.

Porque agora é assim: compartilhamos, pelo celular, receitas especiais, contatos de produtores familiares, dicas do que usar nas plantas caseiras, contatos de pets que vendem rações mais baratas, lugares para adotar animais, poesias, histórias, memes e gritos contra o governo.

Continuo com a pilha de livros em andamento mas aderi também aos áudios, porque nada é mais simbólico do que ouvir Clarice Lispector enquanto se lava a louça, roupa ou banheiro.

Há beleza na dor.

– Papai errou o churros pela terceira vez.

– Substitui por pastel.

– Também vou fazer pastel mas agora é uma questão de honra: esse churros vai sair hoje. De qualquer maneira.

Enquanto ele segue firme em seu enfrentamento, eu sigo para a máquina de costura para fazer as bandeirinhas.

Os retalhos que não viraram máscaras seriam costurados.

– Mamãe, vamos colocar saias iguais? Vamos?

Pergunta a pequena, pulando cheia de animação.

– Claro, meu amor.

– E o papai tem que colocar roupa de festa junina.

– Ele vai.

E assim, entre cozinha, quintal, panelas, barraquinha de pescaria com peixinhos de papelão e cachorros de verdade, fizemos nosso São João.

Nós quatro. E nossos bichos.

Com fogueira, forró, pescaria, pipoca, paçoca, amendoim, bolo, pastel, bandeirinha e churros. Com saias e camisa xadrez.

E eu, que mais uma vez estava perdendo o ar, consegui novamente respirar.

E dançar!

Ao som da brasa queimando, dos cachorros latindo, de Elba cantando e de crianças sorrindo.

Há beleza na dor.

E, também, pode haver respiro no caos.

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