Entre a alegria e a dor – aqui estamos nós

Por Paty Juliani

“DIZEM OS MAIS VELHOS QUE A CHUVA NASCEU DA LÁGRIMA DE OMBELA, UMA DEUSA QUE ESTAVA TRISTE…

ESTOU TRISTE E VOU CHORAR…MAS PARA QUE AS MINHAS LÁGRIMAS NÃO MATEM OS BICHOS NEM AS PESSOAS QUE VIVEM NA TERRA, VOU DEIXAR QUE TENHAM MUITO SAL E QUE ALIMENTEM TODOS OS MARES…

Há mais de 20 é em suas águas que me abasteço. Ali, reflito sobre o ano vivido, agradeço e peço proteção. No conhecido mar gelado e intenso, que aprendemos a conhecer e respeitar.

…O PAI DE OMBELA, AO SABER DA SUA TRISTEZA, VEIO FALAR COM ELA: – MINHA FILHA, A TRISTEZA FAZ PARTE DA VIDA. – EU SEI, PAI. MAS QUANDO ESTOU TRISTE, DÓI-ME O PEITO…

Mas, com o tempo, as mudanças foram ficando visíveis. Não nas ondas, que continuavam fortes e intensas, mas ao redor delas. E, apesar dos incômodos visíveis de atitudes humanas excessivas e corriqueiras, a natureza sempre preservou esse paraíso – dentro e fora de mim.

…O PAI DE OMBELA SORRIU. DEPOIS APAGOU O SORRISO DO SEU ROSTO E DISSE: – QUE SORTE, MINHA FILHA, QUE SÓ TE DÓI O PEITO…

– Olha esses morros…a estrada, tão pequena, no meio disso tudo…e a população cada vez maior aos seus pés…

Nós sempre olhávamos.

Era e é visível as pessoas vivendo ao seu redor. A fiação abarrotada entre os postes, as bicicletas indo e vindo pelos acostamentos, os pedestres caminhando antes e depois do trabalho e os morros cercando tudo – altos e imponentes.

… – E TU, PAI, QUANDO ESTÁS TRISTE, O QUE TE ACONTECE? – FICO MAIS PEQUENINO, FILHA. – OS DEUSES PODEM FICAR MAIS PEQUENOS? – PODEM, RESPONDEU O PAI DE OMBELA. – OS DEUSES, COM O PASSAR DO TEMPO FICAM CADA VEZ MAIS PEQUENOS…

Enquanto às margens a população local aumenta, lá dentro, construções, ruídos e aglomerações ampliam. Um abastece o outro. Um se alimenta do outro.

…OMBELA LIMPOU A SUA PRIMEIRA LÁGRIMA E QUSE SE ESQUECERA DE CHORAR. – NÃO TE ESQUEÇAS DE CHORAR, LEMBROU-LHE O PAI. ASSIM COMO A LUA TEM MUITAS FACES NO MUNDO, POR VEZES, FAZ INVERNO E OUTRAS VEZES FAZ VERÃO. MESMO NÓS, OS DEUSES, NÃO PODEMOS SEMPRE ESTAR FELIZES…

– Você continua se reconhecendo aqui?

Eu sabia o que essa frase significava. E sentia. Mas, de uma maneira ou de outra, o paraíso ainda era preservado em mim. Mesmo com…ou apesar de…

– SE É HORA DE SORRIR, DEVES SORRIR. SE PRECISAS CHORAR, DEVES CHORAR…

Quando descortinamos os excessos, enxergamos a beleza – do mar, da areia, da natureza que cerca tudo e todos ao redor. Mas conseguir descortinar tudo isso tem exigido um esforço cada vez maior.

OMBELA COMEÇOU A CHORAR. TINHA MUITAS LÁGRIMAS E PARECIA MUITO TRISTE. CHOROU DURANTE ALGUM TEMPO E ASSIM SE ENCHERAM OS OCEANOS DESSA ÁGUA TÃO SALGADA…

Comecei janeiro mergulhando nessa água salgada, gelada e cheia de esperança tão conhecida.

Termino fevereiro tirando os confetes do corpo, o glitter da cara e refletindo muito sobre a prontidão que sempre temos que ter – na alegria ou na dor.

– PENSOU QUE É HORA DE PARAR DE CHORAR. NÃO SEI SE CHORO PORQUE AINDA ESTOU TRISTE OU PORQUE GOSTO TANTO DE OLHAR O MAR…

Ouço que esse foi o melhor carnaval dos últimos tempos. Mas ouço também que esse foi o mais triste.

Concordo com ambos.

O PAI DE OMBELA, AO SABER DA SUA DÚVIDA, VEIO FALAR COM ELA. – MINHA FILHA, QUEREO QUE SAIBAS MAIS UMA OISA: AS LÁGRIMAS NÃO NASEM DOS APENAS QUANDO ESTAMOS TRISTES. EISTEM TAMBÉM S LÁGRIMAS DE FELICIDADE. QUERO MOSTRAR-TE UMA COISA…

Curtíamos a alegria das ruas, depois de tanto tempo de angústia, quando ali perto (tão perto) das águas salgadas de minhas constantes intenções, o solo, as casas e os corpos eram soterrados.

O PAI DE OMBELA PÔS AS SUAS MÃOS EM CONCHA E MOSTROU-LHE AS FLORES, AS ÁRVORES, OS ANIMAIS E TUDO O QUE NA TERRA PRECISAVA DE ÁGUA DOCE…

A ressaca da alegria chega numa enxurrada de tristeza.

Com a força da natureza.

E com o movimento dos homens.

COM O SEU DEDO DESENHOU ALGUNS RIOS. DEPOIS INVENTOU OS LAGOS E AS LAGOAS. – ESTES RISCOS QUE VÊS NA TERRA, E ESTES LUGARES QUE PARECEM BURACOS VAZIOS, ESPERAM AGORA NOVAS LÁGRIMAS TUAS…

Estávamos longe.

Mas também perto.

Tão perto.

Cada vez mais perto.

E isso não importa.

– PARECEM CAMINHOS E LUGARES DE ÁGUA… – SIM, SÃO CAMINHOS E LUGARES DE ÁGUA. – VAMOS CHAMAR-LHES RIOS, LAGOS, LAGOAS – SORRIU OMBRELA. – JÁ NÃO ESTOU TÃO TRISTE E AINDA TENHO LÁGRIMAS COMIGO…

E isso tudo é sobre nós.

Sempre sobre nós.

– AGORA VOU FAZER CHOVER SOBRE A TERRA: A LÁGRIMA DA TRISTEZA VAI CHAMAR-SE “ÁGUA SALGADA”. A NOVA LÁGRIMA SERÁ A “ÁGUA DOCE”. O PAI DE OMBELA SORRIU E RETIROU-SE…

Alegria, batuque, cores, sorrisos, brincadeiras, danças, corpos em movimento e água para saciar a sede, lavar a alma e aliviar o suor.

Tristeza, dor, choro, lama, terra, nomes, números, falta de água para beber, lavar, cuidar.

Tudo junto.

Ao mesmo tempo.

Passando aos nossos olhos.

DIZEM OS MAIS-VELHOS QUE A CHUVA É SINAL DE QUE OMBELA ESTÁ A CHORAR…

– Mamãe, e agora?

– Vamos tentar fazer o que podemos. De longe.

Longe.

Mas perto.

Sempre tão perto.

Cada vez mais perto.

SE ESSA CHUVA CAI SOBRE OMAR, OMBELA ESTÁ TRISTE. SE AI SOBRE A TERRA, SOBRE OS RIOS, SOBRE OS LAGOS, OMBELA ESTÁ FELIZ…

Gente voltando.

Gente que não tem para onde voltar.

Números aumentando.

Vidas desaparecendo.

DIZEM QUE OMBELA TEVE MUITAS FILHAS…E QUE TODAS SABEM FAZER CHOVER.

Entre a alegria e da dor, estamos nós.

Tentando entender.

Explicar.

E fazer.

O que dá.

O quase nada.

De longe.

Mas sempre tão perto.

Cada vez mais perto!

*A história trazida e que compõe esse texto se chama “Ombela: a origem das chuvas” de Ondjaki, com ilustrações de Rachel Caiano, Editora Pallas Mini – Rio de Janeiro, 2016.

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s