O que gostamos – Quarto de Despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus

por Rita Durigan

Uma escrita nada simples, nada rasa. Uma escrita vida, pulsante, intensa, profunda.

Entre o lixo onde catava papel para revender e de onde extraia restos de comida para sustentar os 3 filhos e a si mesma, quando sobrava, Carolina Maria de Jesus registrou um dos relatos que mais me emocionam e me tiram do eixo entre todos os livros que já li, escritos por mulheres sobre suas próprias vidas. E não foram poucos, já que amo ler autobiografias, principalmente femininas. 

Assim como nós 3 – Dede Lovitch, Paty Juliani e eu – registramos fragmentos preciosos de nossa maternidade e da primeira infância de nossas crias em “Criar com Asas – Três amigas, cinco filhos e sete anos de histórias”, publicado em 2022, Carolina Maria de Jesus eternizou em seus registros a realidade da desesperança e sua nem sempre inabalável necessidade de sobreviver de mãos dadas com o amor, a esperança, a vaidade, a permissão para sonhar e toda sua humanidade. Se cito as duas obras num mesmo parágrafo é justamente por compreender a distância entre elas, fruto da desigualdade, da desumanidade e a normalização social de que tudo bem pessoas passarem fome enquanto discutimos se vamos dar chocolate na Páscoa para nossos filhos antes dos dois anos, ou não. 

Os rascunhos que se transformariam em “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” foram descobertos quando o jornalista Audálio Dantas visitou, em 1958, a antiga favela do Canindé – hoje Estádio do Canindé, em São Paulo -, para fazer uma reportagem sobre a vida na favela para o então “Folha da Noite”. Diante das anotações de Carolina Maria de Jesus ele percebeu que a reportagem estava pronta, com uma realidade que profissional algum poderia descrever. E em 1960 foi publicada a primeira edição do livro, pela Editora Francisco Alves. 

O jornalista tentou manter o máximo da escrita da autora, que teve apenas dois anos de estudo, mas era apaixonada por ler e escrever e tinha um senso crítico de quem entende que está à margem de uma sociedade marginalizante e injusta. “Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar, eu escrevia”, declarou a autora, que morreu em fevereiro de 1977 aos 62 anos. 

A primeira tiragem de 10 mil exemplares esgotou em uma semana e o texto de Carolina Maria de Jesus tornou-se referência da escrita feminina no Brasil. Foi traduzido para outras línguas e teve algumas versões publicadas nos Estados Unidos. Mas ela não morreu desfrutando frutos de quem vendeu mais de 300 mil cópias só em uma das edições vendidas na América do Norte. Nem todos os resultados das vendas vieram para suas mãos. O que, infelizmente, não surpreende.

Quem nos acompanha no podcast “Criar com Asas” sabe que sempre que posso indico e cito “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, como no episódio #52: “As várias camadas do silenciamento” (ouça ou assista nos links abaixo) É que os registros daquela mulher são a fonte de vida e, inacreditavelmente, ainda representam o cotidiano de tantas Carolinas que vivem, ainda hoje, em algum barraco perto de cada um de nós. O que vamos fazer com isso? Até quando? 

Carolina Maria de Jesus adorava ler. Crédito: coleção Folhapress

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