Rastros de imensidão

Por Paty Juliani

Cadernos encontrados com escritos. Pedidos, desejos e confissões.

No meio de tanta dor, rastros.

Rastros de imensidão.

Palavras de desabafo, frases com poesia e, por que não dizer, encaminhamentos.

Porque somos assim.

Queremos deixar tudo organizado.

Mas temos tempo?

Tempo!

Quase nunca os encaminhamentos são possíveis.

Mas os rastros estão lá.

Deixamos marcas nos corpos, nas mentes e nos corações de quem encontramos.

Nas pessoas. Naquelas que convivemos ou que apenas cruzam nossos caminhos.

Mas deixamos também em cada canto, em cada fresta e em cada sobra de nossas casas.

Mulheres!

Nós e nossos lares.

Templos. Confessionários.

As plantas, os potes de temperos, as cores das paredes, as fotos escolhidas nos quadros, as manchas nos panos de prato, a posição da louça, o cheiro das roupas, o lugar da vela, as receitas anotadas.

Rastros.

Restos.

Caminhos.

E memórias impregnadas de nós.

Que vão ficando.

De maneira consciente ou inconsciente.

Para quem puder receber.

Para quem quiser ver.

Nós.

Mulheres.

Naquele domingo, enquanto escutava vozes femininas, sentada naquele tão conhecido sofá, relâmpagos de um passado passava por mim.

As poesias.

Os discos.

O sorriso rasgado.

Os longos cabelos.

O passado se entrelaçando com o presente enquanto meus olhos avistavam o piano que sempre esteve ali, naquele mesmo lugar.

Como o sofá.

Os quadros.

E as mulheres.

Mulheres!

Casas com piano são casas com memórias.

Casas com mulheres são templos de histórias.

Muito antes de círculos, rodas, bençãos e conscientização sobre nossa irmandade feminina, aquela casa me mostrava tudo.

Os braços abertos.

As gargalhadas altas.

O cheiro de bolo.

Os filmes inesquecíveis.

Os segredos.

Os olhos nos olhos.

Os abraços.

A conversa sussurrada.

A escuta acolhedora.

Os colchões espalhados.

E as mulheres.

Sempre as mulheres.

Cada uma com sua peculiaridade.

Todas envoltas no amor da matriarca amiga.

O passado tão vivo no presente.

Repleto de saudade.

E lembranças.

Naquele momento, ainda no sofá, vi elas chegarem, saírem e se revezarem.

Ouvi o som ambiente se modificar.

Como já foi.

Em histórias, lembranças e recordações.

Numa dança circular e ininterrupta de vida.

Mas, agora, havia a perda.

E o sorriso, que às vezes chegava, era molhado pelas lágrimas que escorriam em todas que estavam ali.

Eu não tive irmãs.

Mas tive essa casa cheia delas em minha infância e adolescência.

Eu pari irmãs.

E tenho amigas.

Mulheres.

Que me mostram, com força e beleza, como é incrível ser parte de todas elas.

Esse é o meu presente. O meu legado. E a minha benção.

Naquele sofá, silenciei e ouvi.

Ouvi palavras escritas por mulheres, de mulheres, que carregam em si outras e tantas.

Gerações que seguem puxando o novelo desse fio vermelho de tantas singularidades e também comunhão.

Avó, filhas, netas, tias e sobrinhas.

Amigas.

O bailado de cada uma delas.

De todas nós.

As lágrimas que nos acompanhavam eram de dor.

De incompreensão.

E também de beleza.

De tudo que foi.

De tudo que é.

Dos rastros deixados.

E da imensidão que eles nos revelam.

Ailton Krenak, no livro “A vida não é útil” diz que quando tudo está entrando em parafuso, você tem que ter alguém para chamar. E que, nessas horas, ele chama Drummond. Que Drummond é o seu escudo.

Um escudo poesia.

Ali, ouvindo Drummond, me lembrei desse chamamento.

Agora o poeta não era escudo, mas afirmação.

E desejo.

Escolhido.

Um rastro de imensidão.

Um registro de poesia.

Pela vida que foi.

Pelas memórias do que é.

Deixar mulheres (de gerações passadas, presentes e futuras), plantas, cachorros, escritos, amores e Drummond é para poucas.

Definitivamente, é!

As coisas findas, muito mais que lindas, ficaram.

Na beleza que sempre existiu.

Nas escolhas, inteligência e sensibilidade que sempre foi.

A primeira irmã mais velha da minha amiga era a irmã que eu gostaria de ter, se assim o tivesse.

Porque ela era da palavra.

De quem aprecia e compartilha, com entusiasmo, canções, versos e escritos.

Não só num passado, mas num presente que só tem feito destruir e banalizar a linguagem.

O abraço que fui dar, e que recebi com tamanha intensidade, confirmou que dor maior não há.

Mães carregam consigo um oceano, mas não deveriam suportar, em hipótese nenhuma, o peso da morte.

Aquela casa de mulheres confirmou o que eu já sabia: a vida se dá nos encontros, nos afetos e na transformação que tudo isso é capaz de produzir em nós.

Os respiros, a cura e a força para o agora e o depois vem do antes, das marcas, da memória do que ficou e que sempre ficará.

E ali, para todas, ficou um rastro de imensidão repleto de melodias, poesias, beleza, encantamento e vida. Em todo e qualquer vestígio.

Eu gostaria, naquele momento, de ter mencionado o meu amor por aquelas mulheres. As minhas marcas. De ter falado tudo que aquela casa e o que todas elas fizeram em mim.

Queria ter agradecido.

Mas palavras não haviam. E elas sempre faltam quando jorram tempestades em meu peito.

”A casa de vocês é também minha casa; e a família de vocês sempre será minha família”, balbuciei. Apenas.

Esse texto é uma tentativa imperfeita, porém provável e eleita.

De amor.

Agradecimento.

E de escrita.

Porque escritas são rastros permanentes e eternos.

Assim como aquela casa e mulheres são em mim.

Rastros de imensidão!

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