Por Paty Juliani
Eu sempre gostei de observar as escolhas que fazemos quando vamos presentear alguém. E as escolhas que as pessoas fazem quando nos presenteiam. Quando vamos escolher o presente, o fazemos pensando na possibilidade de agradar quem vai recebe-lo, mesmo que eles não tenham nenhuma relação com nossas próprias preferências. O olhar é sempre voltado ao outro. No entanto, ao fazê-lo, de alguma maneira, também estamos imprimindo nossas próprias escolhas e elas dizem (mesmo que inconsciente) muito sobre nós.
Escolhas.
Possibilidades.
Renúncias.
Que são feitas todos os dias.
Em todos os momentos.
– Estou pronta. Vamos para a escola?
Lá fora o céu estava bonito. As flores cresciam no quintal e o cheiro de café invadia a cozinha.
Mas lá dentro, era uma tempestade que acontecia.
– Eu posso faltar?
Nós tínhamos conversado sobre essas possibilidades no dia anterior. Ir ou não ir para a escola.
Eu e ele.
Nós e elas.
Pela nossa percepção, não era hora de sucumbir ao medo e a essa onda, desesperadora, de violência. Tínhamos firmes nosso propósito, nosso centro e era sobre isso que estávamos discutindo.
Firmes?
Nosso?
Mas…e os outros?
Sempre os outros. Com suas próprias percepções, escolhas e decisões.
Os “outros” que atravessam o “nós”.
E a vida que só se faz nesse encontro.
Depois do medo do vírus, passamos a ter medo de gente.
Gente, que somos nós.
Sem eu ou outro.
Apenas nós.
Ou agora temos medo de tudo?
Depois de nos isolarmos involuntariamente, agora nos isolamos voluntariamente. Do mundo, do coletivo, do encontro, daquilo que faz com que sejamos humanos.
E temos pago um preço alto demais por isso.
O medo levou ao desespero. E o desespero com manipulação produziu seres assustados que depredam patrimônio público, que gritam palavras de ordem sem fundamentos, que cancelam o pensamento diverso, que acreditam que a vida se dá em telas e que matam, por matar. E isso numa velocidade absurda, que nos atropela e atordoa.
“Bacurau é aqui”, diz uma amiga. E não é apenas ficção.
É ficção baseada na realidade.
Por isso o filme (e a vida) nos angustia.
– Tudo bem, você fica. E você, vai.
E eu?
Fiquei.
Com medo.
Com.
Medo!
O que leva uma mãe a, supostamente, deixar uma correr risco e a outra não?
Eu não sabia.
Não havia garantias.
Apenas escolhas.
Escolhas.
E se algo desse errado?
Qual o tamanho da responsabilidade de uma decisão dessas?
Qual o tamanho da CULPA de uma MÃE?
Que espécie de mãe sou eu?
Havia o pensamento nelas.
Em todas elas.
Em nós.
Que somos eu e elas.
As que tiveram a maternidade interrompida pela violência que levou seus filhos.
As que hoje estavam decidindo se seus filhos iriam ou não para a escola.
As que estavam com medo.
E as que nem queriam pensar sobre isso.
Por que todas “elas” somos “nós”.
E é sempre sobre nós.
Eu poderia ter falado para uma ficar. Ou ter dito para a outra ir.
Poderia ter simplificado essa escolha por um caminho apenas.
Ir ou ficar.
Mas era sobre ir.
E também sobre ficar.
Sobre como tudo isso tem afetado nossos filhos de maneiras diversas dependendo da idade e da maneira como tudo isso tem chegado até eles.
Uma é criança.
Outra, adolescente.
Uma querendo ir sem compreender direito o tamanho de tudo isso.
Outra querendo ficar por tudo que tem ouvido e visto desde então.
A criança que acredita na proteção do abraço e da fala certeira.
A adolescente que precisa muito mais do que isso.
Há alguns anos, minhas filhas ganharam de uma amiga muito querida (que já me deu um pássaro Tiê vermelho de madeira, uma xícara verde em formato de folha, um livro infantil chamado “Patrícia” e infinitas risadas), um caleidoscópio. Daqueles de madeira, com lentes translúcidas que possibilitam olhar para o mesmo lugar com perspectivas diversas.
Um presente simbólico e muito especial, já que há muitas maneiras de ver o mundo.
A vida. E nossas escolhas.
Dependendo de como olhamos, o mesmo ponto ganha outra dimensão. E essa minha amiga, também mãe de criança e adolescente, com sua vida, escolhas e gestos, sempre me mostrou isso.
Naquele momento eu era a mãe que não tinha a mínima ideia do que deveria ser feito. E o caleidoscópio era a imagem que eu agarrava para me sustentar.
Porque no fundo, o que eu estava fazendo era confiar.
Apenas confiar.
Na percepção de minhas filhas, na condução das instituições escolhidas para elas estarem, na proteção dos seres de luz e no cuidado dos humanos amorosos, acolhedores e verdadeiros.
Cada uma delas traduzia a maneira como essas notícias tem afetado nossas crianças e adolescentes e a faixa etária mais atingida por esse mundo virtual.
A adolescência.
A adolescência que está adoecida.
A adolescência que precisa ser vista.
E isso está cada dia mais visível.
Mas o que fazemos?
Não sabemos.
Ninguém sabe.
Mas intuímos.
Na confiança.
Nos nossos processos amorosos e afetivos.
Na construção diária e ininterrupta do diálogo, do afeto, da segurança.
Nas relações reais e verdadeiras.
No fortalecimento da autoestima e das nossas pequenas (porém grandiosas) vitórias de cada dia.
Naquele dia minha escolha foi ouvir.
Ouvir.
Meu coração.
Minha percepção.
Minhas filhas.
E, com as múltiplas possibilidades e visões do mesmo fato, uma foi – com lavandas colhidas do nosso jardim para presentear todos os profissionais da escola e a outra ficou – de preguiça, pijama e com cachorros ao redor.
E eu fiquei.
Esperando.
Uma voltar.
E a outra decidir levantar.
E seguir.
Porque no fundo, é sempre isso que fazemos.
E é sempre sobre nós.
Não é?
* Esse foi um texto escrito sobre o dia 20.04.2023, data que todas as mães tiveram que decidir se levariam ou não seus filhos para a escola diante da ameaça instaurada nas redes sociais sobre possíveis massacres nessas instituições, pois o dia 20.04 é lembrado por esse evento, ocorrido na Columbine High School, em Columbine, nos EUA, no ano de 1999.
